Em “Manual de cronópios e famas”, Julio Cortázar tem um conto, "O jornal e suas metamorfoses”, em que o protagonista é um inocente jornal: quando é lido, é um jornal, mas, no instante em que o abandonam sobre um banco de praça, ele vira um monte de folhas impressas, até o instante em que alguém novamente o pega para ler, transformando-o de volta em um jornal.
O conto passa uma ideia utilitarista que aprecio muito: um objeto só é definido quando possui uma função. Sem função, ele é simplesmente o arremedo de algo, a sombra de uma utilidade. Sobre o banco de praça, um maço de folhas é somente isto, um maço de folhas. Se estamos longe e o contemplamos, até podemos pensar que ele é um jornal, transformando-o na sombra de algo, até o momento em que o seguramos e ele vira o jornal que lemos. Assim é com todos os objetos que possuímos: eles só existem quando atendem a uma função, senão são simples aglomerados de átomos e moléculas.
Sei que o utilitarismo é uma concepção filosófica ligada à moral e à ética, na qual se afirma que os atos de alguém só podem ser julgados pensando na utilidade final deles. Por exemplo, uma pessoa pode mentir se assim evitar um assassinato ou uma traição. É uma teoria que dá uma passada de pano geral para os atos humanos, pois não conheço ninguém que não veja algum tipo de utilidade em tudo o que faz, até na mais execrável das atitudes, mas, bom, não é hora para essa conversa.
Se penso nesse conto de Cortázar é porque, um dia, já fui alguém que apreciava o frio.
Gostava de andar com roupas mais pesadas e longas, de comer alimentos quentes, de atravessar o hálito gelado das ruas porto alegrenses como se fosse a estátua de proa de um navio avançando por entre a resistência do mar. Achava o inverno mais sofisticado, com um clima que levava à introspecção e à leitura calma, silenciosa. Eu era a pessoa que saudava a mudança de estação, e não me envergonho de dizer que escutava dezenas de vezes a minha parte favorita de “As quatro estações”, do Vivaldi.
No entanto, nos últimos anos, percebi que a chegada do frio não me trazia mais alegria e sim desconforto. No princípio, pensei que fosse a idade - o frio é mais forte na medida em que envelhecemos -, mas não era só isso. O meu incômodo era constatar que o frio só é bonito para as pessoas que estão cobertas de roupas quentes ou que possuem casas confortáveis. Para as demais, o frio não é bonito, mas um assassino lento que espreita cada um dos seus passos e rouba um pouquinho de calor a cada gesto.
O frio machuca, em especial os solitários e os desprotegidos. O calor é gregário, permite que as pessoas saiam para a rua em busca da sombra de uma árvore ou de uma brisa. O frio não; ele é a extensão da solidão, um outro nome para o desamparo. Um abraço bastaria para transmitir calor, mas quem sofre com o frio às vezes nem tem esse consolo. Quem é atacado pelo frio não tem para onde escapar; não possui conforto possível, somente alívios momentâneos. Anda por aí, encolhido, enquanto as demais pessoas, bem protegidas dentro de casulos de calor, passam ao seu lado e desviam o rosto.
Nos últimos tempos, em especial agora, durante esse inverno que castiga o Rio Grande do Sul, a insônia tem me castigado com dureza. Nas noites de frio absoluto, ouvindo a chuva fina bater na janela, tudo o que consigo pensar é nas pessoas que sentem frio. Naquelas que não têm nome. Naquelas que são esquecidas por todos. Naquelas que tentamos culpar, dizendo em tom condescendente “ah, mas devia ter buscado um abrigo, né”.
Penso nas pessoas que vão morrer hoje - sim, toda noite morrem algumas pessoas de frio, mas geralmente ninguém vai divulgar isso, em especial no meio das propagandas com gente feliz na frente de lareiras, tomando chás, envoltas em cobertas. Penso nas crianças com tanto frio que seguram até a respiração dentro de si para sentir algo quentinho. Penso nos idosos atordoados que caminham pelas ruas, imaginando que as luzes dos postes de iluminação trazem consigo o calor, mas, não, até as lâmpadas são frias.
Às vezes, de madrugada, assombrado pela minha imaginação, saio da cama e vou até o armário, buscando roupas para doar. No entanto, doei tudo o que podia durante as inundações, sei que dificilmente encontrarei algo para ser doado, pelo menos algo quente. Volto para a cama com a sensação ruim de derrota, e me retorço de um lado para o outro desejando com força que o frio ceda, que o vento diminua sua força, que a chuva dê ao menos uma trégua.
Não, não gosto mais do inverno. Assim como as folhas impressas sobre um banco de praça, quando retiramos o aspecto estético que insiste em mostrar o inverno como algo belo com o intuito de nos fazer comprar mais e assim girar a roda alegre do capitalismo, vemos a estação como ela realmente é: uma inimiga feroz e implacável do ser humano. O General Inverno, capaz de derrotar exércitos e que destina toda a sua fúria para aqueles que não conseguem se proteger. E, como disse Vitor Ramil em “Joquim”, “ao amigo que veio ajudá-lo, falou / me dê apenas mais um tiro por favor / olha pra mim, não há nada mais triste / que um homem morrendo de frio…”.
Haroldinho e a coberta
De acordo com o último recenseamento, Haroldinho tem 6 cobertas, cada uma delas localizada em um ponto estratégico da casa. Elas possuem a sua própria utilidade, que foi concedida por Haroldinho após detalhada observação dos tecidos - e horas de sono, pois avaliar isto dá trabalho: uma é indicada para dias de frio moderado, só com um ventinho inoportuno; ele prefere uma outra para os dias de vento inclemente, que espalha o frio por todas as frestas da casa; tem uma coberta branca que Haroldinho gosta porque ela é enorme e faz com que ele se sinta descomunal; tem outra que foi dada pela tia Vivi Schwäger e parece o manto de um cavaleiro templário, que Haroldinho gosta para os dias que precisa se sentir épico, um cavaleiro prestes a tomar de assalto os muros de Jerusalém, ou onde se recosta para ouvir minhas aulas; tem outra que possui a mesma cor do pelo de Haroldinho, a qual ele usa para se camuflar e desaparecer (eu faço de conta que caio no truque desse pequeno Houdini desdentado); a última, essa que está na foto, era minha coberta, mas Haroldinho a adotou porque ela parece um tecido de tweed, e ele gosta de se sentir respeitável.
Rápidas e rasteiras
No exato momento em que escrevia esse texto, uma moradora aqui do meu prédio colocou uma mensagem no grupo de WhatsApp: “Queridos vizinhos, preciso de jornal urgente! A Dora fez xixi”. Essa é outra metamorfose dos jornais, um final nada nobre depois de uma vida de efêmera utilidade, mas também não é o nosso inapelável destino? Somos mesmo tão diferentes dos jornais abandonados em praças?
Luciana Vergniassi disse em um comentário e eu concordo: que dureza escrever “pelo” sem o acento circunflexo, parece que estamos cometendo um crime. Escrever “voo” nunca mais teve tanta graça para mim, e “linguiça” sem trema continua me parecendo “lingissa”.
Ainda pensando no conto do Cortázar, o quadrinista francês Chabouté lançou uma graphic novel chamada “Um pedaço de madeira e aço”, contando um dia na vida de um banco de praça. Não possui diálogos, e acompanhamos a história do ponto de vista do banco. Presenciamos casais se sentarem nele, pessoas deixarem comida cair nas madeiras do encosto, jovens inscreverem frases de resistência, uma criança amarrar seu balão no banco enquanto brinca. No meio das movimentações humanas, testemunhamos o sol, a chuva, a noite, assim como a segurança estática do banco que atravessa tudo. Acho comovente a ideia de algo simplesmente ser como é, sem precisar se prestar a obedecer aquilo que os outros desejam que ele seja.
Difícil falar sobre o inverno sem lembrar do conto “Um menino na festa de Natal do Cristo”, de Dostoiévski, em que um menino sozinho, com frio e fome, atravessa a noite de Natal “em alguma cidade enorme, num dia de frio terrível”, vendo os outros receberem a alegria, o conforto e o carinho do qual ele é cruelmente privado. Uma história desesperadora, em especial por mostrar que, mesmo depois de quase 150 anos (o conto foi escrito em 1876), ainda não conseguimos resolver o problema dos desamparados que passam frio, ou seja, não evoluímos quase nada.