Pelo retorno dos bobos da corte
A Noite e o Caos são parte de mim. Dato do silêncio das estrelas.
Não seria exagero dizer que boa parte do país ficou atônita ao assistir, em um debate dos candidatos à prefeitura de São Paulo, um deles (Datena) sair do seu lugar e acertar uma cadeirada no outro (Pablo Marçal). Analisando as reações, percebi que o espanto se devia a uma simples contatação: ei, isso pode? Dá para encerrar qualquer discussão ou desavença com uma cadeirada na cabeça do outro? Como foi que nunca pensei nisto antes? Cada vez mais, vejo pessoas tentando resolver seus problemas apelando para a violência ao invés de melhorar seus argumentos, e receio muito o que ainda está por vir: um país reeditando o Código de Hamurabi quase 4.000 anos depois.
Contudo, essa questão me interessa menos do que outra, mais instigante: o fato de uma parcela significativa da população brasileira ter prazer em assistir essa cena, compartilhando-a e se regozijando. Inclusive vi que, em recente levantamento realizado, constatou-se que mais de 2/3 dos comentários expressaram “felicidade” ao ver uma cadeirada na cabeça de alguém: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/cadeirada-em-marcal-internet-reagiu-com-felicidade-diz-levantamento
Se pensarmos que tudo é um aprendizado, é de causar receio o que acontecerá nos debates futuros. Nesse caso, como evitar um escalonamento da desordem, da baixaria, da violência?
Creio que só existe uma resposta: abraçar o caos e fazer com que ele também participe dos debates.
Pablo Marçal não é uma doença, mas um sintoma dos tempos. Boa parte das pessoas que sentiram felicidade ao vê-lo levar uma cadeirada não experimentaram isto porque o odeiam, mas sim porque ele representa o caos, a vox populi, o cidadão comum. Nesse caso, Datena estaria tentando organizar o mundo com um gesto só - no caso, uma cadeirada.
Talvez seja hora de permitirmos o ingresso do caos na nossa vida, pois somente ele explica esse absurdo que é a realidade, onde pagers podem explodir no Líbano e vacas alçarem voo na Índia. No passado, os reis nomeavam bobos da corte, homens e mulheres que se vestiam de forma espalhafatosa e serviam de um elemento de divertido caos no meio da corte ou de outros assuntos mais chatos. Os bobos da corte debochavam das pessoas e dos costumes, contavam piadas sujas e faziam galhofas, desestabilizando os hábitos e deixando todos na defensiva. Mais importante ainda, eles tinham carta branca para fazer o que quisessem - inclusive dizer a verdade, e nem mesmo o rei estava a salvo das suas brincadeiras. Eram intocáveis, e isso lhes dava a liberdade de usarem o caos ao seu bel-prazer.
Imaginemos um debate político com um bobo da corte - ou outro nome qualquer, tendo em vista o seu caráter pejorativo, ninguém gosta de ser bobo. Um homem ou mulher que está no palco, andando entre os políticos e os mediadores, alguém que tem autorização para ouvir uma frase e gritar “tu tá mentindo que eu sei!” ou ouvir uma pergunta mal formulada do mediador e dizer “tu pode melhor do que isso, hein, por que não perguntou sobre aquele superfaturamento?”. Alguém que coloca o dedo na incômoda verdade e que, por não poder ser tirado ou punido, é a voz do caos, fazendo as perguntas daqueles que não podem fazer perguntas. Ele seria um arremedo de justiça divina, punindo os candidatos falsos e mentirosos debochando deles em tempo real, e não existe arma mais mortífera do que o deboche. Isto sem contar que, dependendo do preparo do bobo da corte, pode gerar ótimas risadas e alívio cômico, ironizando pessoas acostumadas a se comportarem em público como vestais (ainda que suas túnicas tenham as barras sujas de lama).
Não sei se temos tamanha maturidade. A política dança um compasso em que todos mentem e ficam acomodados nas mentiras, enquanto o eleitor aceita as ilusões e faz de conta que acredita. Colocar o caos no meio dessa equação é fazer com que todos fiquem na defensiva e sejam forçados a dizer a verdade para escapar da sombra confortadora das próprias mentiras e engodos.
Tudo bem, talvez alguém ache que estou debochando da situação. Nesse caso, ao invés de colocarmos um bobo da corte, alguém com autorização para ironizar, hostilizar e estimular o caos no debate, podemos colocar um coro. Na Grécia Antiga, o coro representava a voz da sociedade, expressando anseios morais e suscitando a consciência dos personagens. Seria muito instigante ver um político mentindo deslavadamente uma fake news e a voz de um coro erguer-se do nada: “você está mentindo, talvez para ocultar a sua falência moral, responda o que for perguntado”. Mas, seria possível um coro de vozes respondendo instantaneamente a uma mentira dita ao vivo? Ora, e para que diabos existem as inteligências artificiais, para escrever livros ou criar pinturas ao invés de trabalharem a nosso favor?
O caos é irreversível. As situações só tendem a piorar. Assim, ao invés de esperar que o Iluminismo entre na cabeça da nossa sociedade a fórceps, melhor é aceitar a desordem e ver o mundo encontrar o prumo enquanto se estimula o caos e a cizânia. Que retornem os bobos da corte - não para nos divertir, mas para nos salvar.
Haroldinho e o caos
Haroldinho possui uma rotina diária, e não abre concessões. Acorda às 03 da manhã querendo biscoitinhos - sim, imaginem minha felicidade -, depois dorme até às 07h na minha cama, toma seu desjejum às 07h30, vai para o sofá e espera a chegada do sol, passando a manhã dormindo sob seus raios. Levanta às 12h30, come ração seca (e biscoitinhos), vai para a minha cama e aproveita o sol da tarde de cabo a rabo. Às 18h, vem me fazer companhia na biblioteca e, às 20h, encerra meu expediente batendo nos meus pés ou me dando cabeçadas. Se eu estiver dando aulas ou falando com alguém, ele deita na minha poltrona e fica assistindo as aulas (os alunos sabem!). Das 20h15 às 20h30, é escovado e acariciado. Janta e vai para a cama, onde fica miando até que eu vá acompanhá-lo.
O problema é quando o caos invade o mundo do Haroldinho. Em alguns dias nublados, o sol não surge; às vezes demoro a servir o desjejum dele; nas noites em que saio de casa, ao chegar, vejo ele muito irritado na minha cama, inconformado que eu tenha uma vida longe da sua presença dourada. No final de semana passado, Haroldinho ficou chocado com uma aranha que saiu de trás de um armário - bom, eu também fiquei, ela colocaria a Laracna de “O Senhor dos Anéis” no chinelo - e olhou-me com uma cara de “deixa de ser incompetente, dá um jeito nisso agora!”.
Haroldinho não consegue conceber a ideia de caos no mundo. Para ele, o caos é simplesmente “esse humano grande que mora comigo não está se esforçando o bastante”.
Rápidas e rasteiras:
Assisti a um ótimo filme no Prime Vídeo, “O sabor da vida”, que concorreu ao Oscar do ano passado pela França, e uma frase ficou reverberando na minha memória: “a descoberta de uma iguaria deixa a humanidade mais feliz do que a descoberta de uma nova estrela”. Tem muita verdade nessa frase: estrelas não enchem a barriga de ninguém, valem como conhecimento do universo, mas uma nova iguaria… entre o longe e o distante, mais alegria causa o que nos é próximo. Além disso, criar é sempre muito mais complexo e gratificante do que descobrir ou destruir. Fica a dica para os que desejam resolver tudo com cadeiradas.
Fui ler um pouco sobre a vida dos bobos da corte e deparei-me com uma história deliciosa. O Rei Francisco I da França tinha um bobo da corte famosíssimo, Triboulet. Em certa ocasião, Triboulet passou a mão na bunda do Rei Francisco I, que ficou indignado e decidiu executá-lo. No entanto, respirou fundo, acalmou-se e disse que, se Triboulet fosse capaz de ofendê-lo de uma forma ainda mais desrespeitosa do que fizera ao passar a mão na sua bunda, iria deixá-lo sair impune. Triboulet respondeu na hora: “Sinto muito, Majestade, fiz isso porque o não o reconheci. Confundi o senhor com a Rainha”.
Pensando em termos de enjeitados da sociedade e das boas normas de conduta, ainda prefiro a contratação de bobos da corte do que de carrascos. Pelo menos daríamos umas risadas.
Solução para lidar com o caos deste mundo: ter um gato. Melhor coisa!