Perdidos e achados
E por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim
Terminei de assistir a um seriado na Amazon Prime, “Expatriadas”, que, apesar de não ser brilhante (somente uns dois episódios são excepcionais), deixou-me muito pensativo sobre a angústia de estar perdido nesse mundo, vasto mundo.
Com um pouco de desconforto, lembrei-me que o meu medo mais antigo é ser perdido, deixado de lado, esquecido, condenado a vagar sem rumo por aí em busca de algo que não consigo achar. É um medo que tenho desde criança: tinha a impressão de que, um dia, seria esquecido em algum lugar, e não saberia como voltar para casa.
Pior ainda, tinha a impressão de que meus pais não desejariam que eu retornasse; afinal, crianças dão despesas, criam incomodações, ficam doentes e deixam eles mais distantes da liberdade, não seria melhor me descartarem por aí e viverem sem a minha presença? No meu raciocínio lógico infantil, percebia que eles teriam mais vantagens se me perdessem do que continuando comigo. Era tão lógico que me sentia capaz de perdoá-los por tomar essa decisão; tudo bem, pessoal, tenho cinco anos de idade, vocês até que me aguentaram muito.
Levei muito tempo para entender que esse pensamento não passava pela cabeça dos meus pais, ao contrário, deixava eles aterrorizados. Até ter essa noção, foram muitas vezes de “vou ali pegar o carro e já venho, me espera aí”, e os minutos passando enquanto eu pensava “é hoje, é hoje que a mãe não volta.”
Meus pais nunca me perderam, mas quem acabou se perdendo fui eu mesmo. O ano era 2001, e pela primeira vez eu estava no Rio de Janeiro. Tinha ido para o Rock in Rio, assistir ao show do Iron Maiden, com o retorno de Bruce Dickinson e Adrian Smith. Eram outros tempos, e eu viajara em uma excursão de ônibus com dois amigos e mais trinta desconhecidos. A viagem era um daqueles péssimos planos que só jovens são capazes de fazer: literalmente viajaríamos 24 horas, assistiríamos ao show e retornaríamos direto para Porto Alegre tão logo acabasse.
Tudo transcorreu no caos que era de se esperar, e chegamos à Cidade do Rock. Logo na entrada, marcamos o ponto de encontro no final do show, uma barraquinha de cachorro quente. “Não vou esperar ninguém! Não fiquem se aranhando!”, gritou o motorista. Cada um foi para um lado, exceto eu e meus dois amigos, que ficamos juntos.
Ocorre que, no início do show do Sepultura, a plateia explodiu em êxtase - nós estávamos no meio dessa confusão - e acabamos nos separando. Tentamos nos localizar, mas era impossível: depois descobrimos que tinham quase 150 mil pessoas no show.
Acabei sozinho, assistindo aos shows em um canto da plateia. Assim que soou o último acorde, com o público ainda emocionado, a luz inteira da Cidade do Rock simplesmente sumiu. Deviam ser três horas da manhã. A multidão foi se dirigindo para a saída e, ao caminhar até a barraquinha de cachorro quente, percebi que ela tinha desaparecido, possivelmente fechada antes do final do show.
Pensei “calma, vou até o estacionamento procurar o ônibus da excursão”. Assim que cheguei lá fora, bom, vocês podem imaginar a quantidade de ônibus espalhados por todos os cantos da escuridão sem fim do Rio de Janeiro. Cento e cinquenta mil pessoas não surgem do nada, e centenas de ônibus estavam ali à espera, com suas carcaças e placas mal e mal distinguíveis na madrugada.
Eram épocas anteriores à invenção do celular; se ele existia, estava fora do nosso alcance financeiro. Olhando aquele mar de silhuetas se esbarrando, rindo e conversando na saída do show, percebi que estava perdido. Perdido em um estado que não conhecia, em uma parte distante da cidade, sem nenhum amigo para quem pudesse apelar, sem nenhum ponto de referência, perdido ao ponto de sequer saber para onde poderia ir.
Foi como mergulhar em um poço de piche. O tempo inteiro a minha cabeça martelava possibilidades de planos (“Não vou esperar ninguém! Não fiquem se aranhando!”, a frase ecoava nos meus ouvidos) e, enquanto isso, eu caminhava no meio da turbe. Não conseguia sequer divisar rostos com clareza, o que dizer identificar os rostos das pessoas que mal e mal conhecia da excursão. Resignado com a certeza de estar perdido e sozinho, tudo o que eu conseguia pensar era em como ia voltar para casa, em como ia voltar a encontrar a minha vida.
Esse é um daqueles momentos em que o escritor fala a verdade e ela é tão impossível que parece uma solução ficcional criada por um preguiçoso. No entanto, eu vivi a verdade, e sei que ela aconteceu: justo no meu momento de maior desespero e agonia, quando me sentia sem chão e sem possibilidade de voltar ao meu chão, alguém segurou o meu braço e disse “vamos lá, cara, já está quase todo mundo no ônibus, olha só, achei o anel que tinha deixado na entrada!”. Disse isso já me empurrando na direção do ônibus estacionado, o qual eu já passara. Era um dos meus amigos, que tinha ido na entrada da Cidade do Rock resgatar o anel cheio de caveiras e pontas que deixara com um segurança. Como ele me achou no meio daquela escuridão absoluta, no meio de 150 mil sombras deslizando, eu não sei e nem ele me explicou. Aliás, como achou o seu anel entre os outros recolhidos pela organização - lembro que eram dois tonéis cheios de anéis, correntes e braçadeiras -, também desconheço. Só sei que tinha sido encontrado.
Assistir ao seriado trouxe de volta esse medo antigo. Há tempos eu não o sentia, ainda que às vezes ele ressurja quando vejo o anúncio de alguém desaparecido ou o cartazinho buscando um cachorro ou gato perdido. É tão fácil se perder; basta uma olhada para o lado, um entrar na rua errada, um show do Sepultura que explode em frenesi, um ponto de referência que deixa de estar ali, uma árvore parecida com aquela em que o encontro foi marcado.
É tão fácil se perder que é espantoso que boa parte das pessoas acabe sempre se encontrando, e isso vale para tudo: almas gêmeas, inimigos figadais, oportunidades de negócio, empregos ruins, vírus famintos. Ao contrário do que diz a Elizabeth Bishop, a vida não é a arte de perder, mas a arte de seguir se encontrando.
Se hoje, que já estou mais perto do crepúsculo da vida do que da sua aurora, penso nesse antigo medo de ser perdido, não é porque ele continua me assombrando, e sim porque constato que estamos todos perdidos. Cada um de nós caminha sozinho a sua própria jornada, e os pequenos encontros que temos na vida, quando trilhamos algum caminho ao lado de outras pessoas, é mais fruto de um fortuito acaso do que a certeza de termos sido encontrados.
Haroldinho, o achado
Há alguns meses, observei que Haroldinho nunca entra por completo debaixo das cobertas. Não interessa quanto frio esteja, sempre fica uma orelha, uma pata, um olho e às vezes a cabeça inteira para fora das cobertas. Não faltaram tentativas de cobri-lo por inteiro, mas ele insiste em manter uma rota de fuga, um espaço de contato com a realidade. Haroldinho sabe os perigos de se perder e, por isso, gosta do conforto das cobertas, mas mantém a tranquilidade de saber onde está o mundo real. Tal fato o deixa em um estado de eterna vigilância, algo que me entristece um pouco, pois considero cansativa essa incapacidade de relaxar, mas só me resta respeitar o tênue caminho de migalhas que ele criou entre o escuro quentinho que mora debaixo das cobertas e a fria fresta sempre aberta para a realidade. Parafraseando o hino religioso “Amazing Grace”, talvez Haroldinho resmungasse “I once was lost, but now I'm found”, mas o frio que fustiga a parte desprotegida do seu corpo é - para ele - um lembrete eterno dos riscos de ser deixado para trás.
Rápidas e rasteiras
Apesar de eu ter visto “Expatriadas” pela ótica das pessoas perdidas, a reflexão mais importante do seriado - muito interessante, aliás - é a noção de que a pátria de uma mãe é o seu filho ou filha. Isto equivale dizer que todas as mães são eternas expatriadas, pois o filho está destinado a sair de perto dela em algum momento.
Na saída do cemitério, seis urubus - caranchos, como se costuma chamá-los aqui no sul - pulavam de um galho para o outro de uma árvore. Olha ali, são uns clichês, comentei com a mulher que fumava na parada de ônibus, e tenho certeza de que ela só sorriu para mim por educação.
“Doutor, o carro não é meu, por isso gosto de acertar os buracos”, disse o taxista depois do sexto buraco. Aí está algo que nunca imaginei, pensei, uma pessoa viciada em solavancos.
Em busca do tempo perdido. Em busca do passado perdido. Em busca do futuro perdido. Em busca dos achados. Em busca de não ter de estar em busca. Eu já fui perdida. Me perderam. Não falo dos meus pais. Aqueles que nos perdem não nos merecem. Já aqueles que nos acham e que achamos merecem o mundo. Adorei seu texto. Talento é algo que não se perde. Nunca.
"Como ele me achou no meio daquela escuridão absoluta, no meio de 150 mil sombras deslizando?"
O sangue do diabo tem.poder. Ou melhor, tinha qndo o Rock ainda valia alguma coisa. Experimente passar por uma dessa hoje. Tu vai parar na casa da Tati Quebra-Barraco ouvindo pagode na laje.