Na minha lista sempre atualizável de implicâncias, peguei ojeriza - opa, também tenho implicância com quem utiliza “ojeriza”, “alvíssaras” e “somenos”, além de ser um adversário devotado do uso de mesóclises (geralmente, quando as leio, sem querer escapam gritos de “por quê? POR QUÊ?”) - com a forma criminosa que a palavra “infinito” vem sendo utilizada.
Tudo virou infinito: dor infinita, estragos infinitos, prejuízos infinitos, amor infinito, gratidão infinita. Em um mundo onde tudo é infinito, na verdade, nada é; são as pessoas, essas preguiçosas, que saem por aí pespegando infinitos em tudo o que veem ou sentem, com a mesma indiferença de quem sai por aí cuspindo sementes de bergamota.
Vou na onda contrária: nada é infinito. Não existe dor infinita; uma hora ela acaba. Ou depois que morrermos a dor continua? Prejuízos e estragos só são infinitos se não os consertarmos ou pensarmos em resolvê-los. Amor infinito é mais uma esperança do que uma realidade; aliás, a simples ideia de prendermos o amor em alguém ou algo por toda a eternidade vai contra a ideia de um sentimento bom, parece mais uma prisão ou maldição.
Devíamos ser mais cuidadosos com o uso da palavra “infinito”: podemos estar desejando o mal para alguém ao lhe dizer que a dor nunca vai acabar, que os prejuízos nunca deixarão de existir, ou que ela ficará para sempre, nessa e nas outras vidas, presa em nós.
Em 1995, Umberto Eco fez uma conferência falando sobre o retorno do fascismo na Itália, mas adaptado ao mundo moderno, com características ligeiramente diferentes em relação à época do seu surgimento. Também tratou dos riscos de como, ao vermos qualquer característica do fascismo original, já saímos acusando algo de fascista sem que ele necessariamente seja, dizendo que o termo”fascismo”, se for decomposto, pode se encaixar em muitos aspectos, alguns inclusive de caráter não-fascista. Por isso, ele propôs a utilização de um termo, “ur-fascismo”, que destacaria os elementos comuns do fascismo sem esvaziar a palavra do seu sentido. Afinal, se chamarmos tudo de fascista, em breve, a palavra servirá para designar desde um filme ruim até o gosto de um sorvete.
O mesmo vale para o infinito: que ele seja reservado para as coisas realmente impossíveis de serem mensuradas. Que não seja usado em vão, que não seja transformado em mecanismo de poder ou de dominação. Que as coisas voltem a ser finitas, pois saber disso é o que nos faz ir em busca do conforto que mora dentro do fim.
Haroldinho e a vindicação do infinito
Haroldinho tem medo de chuva batendo na janela, de ventos fortes, de água gelada encostando de forma repentina no seu focinho, de petiscos que se deslocam (nunca mais jogo biscoitinhos para ele), do som de latidos na televisão, de pessoas estranhas, de veterinários, de quebras na rotina e de baratas.
Se Haroldinho acreditar no infinito, ele também irá crer que os seus medos nunca acabarão; que passará a vida olhando as nuvens em busca de nuances mais sombrias, que o movimento distante dos galhos traz consigo o embrião de tempestades, que a água irá um dia levantar do pote e lhe engolir, que os petiscos ganharão vida dentro do seu estômago, que os latidos sairão da televisão, que as pessoas estranhas se tornarão conhecidas, que os veterinários podem ser legais, que existem encantos no rompimento da rotina, que as baratas sejam seres crocantes, mas simpáticos.
Haroldinho crê que seus medos um dia acabarão e, por isso, refuta o infinito. Mas faz essa refutação debaixo das cobertas, pois a temperatura é de 5 graus no momento, e Haroldinho não é louco de refutar nada no frio - “entrar para a História é com vocês”, já diria Raul.
Rápidas e rasteiras:
Sobre a demora do meu retorno à newsletter: quem é vivo sempre aparece. Os boatos sobre a minha morte foram um tanto exagerados. Doutor Livingstone, opa, Czekster, eu presumo? Não há mal algum que deixe de existir. Parece que os assassinos falharam. Escolham a resposta clichê que for mais conveniente e sigamos a jornada.
Ontem assisti a um documentário sobre Jimmie Vaughan e Stevie Ray Vaughan, e ainda estou espantado que “Let’s Dance”, do David Bowie, tenha sido originalmente feita por Stevie Ray Vaughan. Bowie chegou no final, ajustou algumas coisas e detalhezinhos na letra e, segundo o produtor, “tornou a música tão sua que simplesmente ninguém mais questionou a autoria”.
Ainda está difícil pensar na enchente que vitimou o meu Estado (Rio Grande do Sul), a minha cidade (Porto Alegre) e tantos amigos e amigas, o que talvez justifique o fato das minhas palavras terem sumido. De certa forma, continuamos todos de luto, tanto pelos que morreram quanto pelos que perderam seus bens, suas memórias, suas histórias. No entanto, ninguém ainda disse algo muito importante: o Estado inteiro está passando por um luto coletivo, um luto por um ideal de gaúcho, por um ideal de povo. É como se tivéssemos caído na real; nossas apregoadas façanhas não servem de nada, nosso orgulho civilizatório não existe mais (um povo que se diz tão educado e superior viu surgir a sua face mesquinha, baixa e bem vulgar), nossa esperança de um futuro glorioso não é nem mais esperança, é um delírio. Estamos muito machucados na nossa alma coletiva, e creio que, no espaço da minha vida, não recuperaremos o brio. O Rio Grande do Sul virou um estado de velhos, feito por velhos e pensado por velhos, e, pior ainda, por velhos de uma elite ultrapassada, que acredita que carro é progresso, que concreto é evolução, que árvores são inimigas. Estamos ralados, muito ralados. Fujam para as montanhas.
Estava sentindo falta da newsletter, principalmente de notícias do Haroldinho. Eu, como sou muito negativa, já penso que algo de ruim tinha acontecido com ele e tu não queria nos contar para não nos deixar trstes.
Concordo com tudo o que disseste sobre nosso estado.
Já no aguardo na próxima!
O Haroldo tem 9 kilos e 3 metros e o vivente chama ele de "haroldinho". VTNC, eu vou te defender, Haroldão!